...Mas Ciúmes de Quê?
Tu sabes o que penso, o que me irrita, o que quero, o que não quero mas acontece, o que me absorve, o que me desanima, o que me satisfaz e desespera, sabe até o que eu quero de mim e o que eu quero para nós. Tu sabes do que falo, e do que calo. Mas não sabes o que eu sou quando nada disso é importante, quando escrevo apenas. Pelo menos acho que não sabes. E se calhar também não sabes que nada do que aqui possa escrever, sem te olhar, sem te poder tocar, poderá alguma vez ser o que falta. Mas mesmo assim, dessa ilusão, são por vezes ciúmes que sinto.
E eu sei - repito-o as vezes que for preciso - que o que escrevo não é o que sou. E até sei que querer parecê-lo é apenas uma traição permitida que a escrita me deixa usar. A escrita é mentirosa. É uma mentira bonita que condescendemos em ler e que nos pode envolver, e levar-nos com ela nessa fantasia que construímos, porque tudo isto nada mais é do que uma construção. Mas também pode ser uma mentira perversa, que apenas pretende falsificar a realidade, a realidade do que nós somos. Saibamos usá-la e podemos ser tudo, podemos ser corajosos, bons, calmos, complacentes, justos, podemos ser tudo o que queremos escrever, podemos até ser amantes. Mas não somos.
Alguém nega que gostaria de vestir a prosa do Eça numa conversa ao serão, por entre copos e amigos? Alguém acha que quando queremos justificar-nos das coisas que lamentamos, das nossas contradições, não era ao Fernando Pessoa que roubaríamos uma estrofe, e depois talvez juntar um beijo e dizer, “desculpa, eu sou assim”? E partir para férias com o espírito arrumado pelo Hemingway, agarrado ali à pressa na altura em que se agarra na mala e fecha a casa? Mas nós não somos isso, não somos o que alguém escreveu, nem sequer somos o que escrevemos. Somos apenas o que já fomos, mesmo quando escrevemos. Porque nisto de ser está muito mais do que o simples dizer, ou escrever, ou até pensar. Que ‘ser’ não é só isto, ser é algo que nos acontece não o que nós façamos acontecer, e ser é só uma vez, de cada vez, e é irrepetível, e não tem sortes de ‘reprise’ e não, não é assim tão fácil.
Aqui no papel tudo é diferente. Lemos, revemos, alteramos, mudamos as nossas reacções como quem troca a ordem de um parágrafo, apagamos os nossos gestos como se fosse um capítulo a mais, escrevemos até o que queremos que aconteça, antecipamos até o que queremos ser quando acontecer o que quisermos que aconteça. É feitiço esta parte que escrevo que é muito melhor que eu. Eu sou míope, ansioso, egotista, inseguro e irascível, sou esgotado, quase sempre, e formal, ausente, exigente, orgulhoso e surdo, sou muitas das coisas que não quero ser e que aqui não tenho de ser. Este sim, sou eu.
Não me regala parecer melhor do que sou, se não o sou. Que eu sou mais do que vírgulas, ou palavras circunspectas, ou parágrafos que se apagam e voltam a escrever. Eu sou o que apenas é quando as coisas acontecem, não depois nem antes, sou muito mais para além daquilo que visto escrevendo. Este encantamento de que me visto com palavras não me pode trazer ciúmes. Isso significaria que estava preso do que apenas escrevo.
Sou por exemplo, agora, esta necessidade de aqui dizer: Não sou nem metade do que aqui pareço, mas sou muito mais do que a outra metade que aqui não fica escrita.
(não levem isto muito a sério, mas estava a precisar de ajustar contas aqui com o tipo da caneta, eu mesmo)
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